A noite vai longa, cansada e arrefecida, entregar-se-á
prostrada à alvorada que não tarda a irromper pelo céu avermelhado para abafá-la
de luminosidade. O burburinho vai sendo cada vez mais ténue. Os noctívagos
vão-se recolhendo paulatinamente das suas demandas e outro dia nasce
timidamente. Continua a busca frenética e a perscrutação impaciente dos
cúmplices: “Onde estará ele? Ter-se-á perdido na Serra?”
§
O movimento ritmado e circular das danças tradicionais
volatilizou-se como uma nuvem de fumo. Os pares pararam de dançar, a música
deixou de tocar, o órgão e o acordeão emudeceram e apenas se ouviam as
algaraviadas daqueles que ainda permaneciam no terreiro diante do palco.
O bailarico terminara!
As horas foram caminhando alheias à minha absorção e o
ponteiro do relógio anunciava em breve as quatro da madrugada. “Passou rápido
este baile”, pensei eu.
Os corpos suados e fatigados dispersavam com sorrisos
rasgados do átrio da coletividade do clube Estrela Desportiva de Bensafrim.
Naquele tempo e àquela hora, a minha presença no baile era inusitada.
Normalmente aos sábados à noite entre julho e agosto, chispava de Bensafrim na
companhia de alguns amigos rumo a Lagos. Inflamados pelo delírio hormonal próprio
da adolescência.
Em Lagos calcorreávamos todas as artérias circundantes entre
o «Mullen´s Bar» e o «Cavaleiro», passando pelo «Bon
Vivant Bar» e, muitas vezes, encerrávamos a noite numa qualquer
discoteca como o «Phoenix Club», «Elétrico» ou «O Lançarote» conforme a berra da época.
A inquietação dos funcionários a limpar e a arrumar os
despojos do baile confirmava que a hora da abalada tinha chegado. Estavam
exaustos, trabalharam incansavelmente horas a fio, e restava-lhes pouco tempo
para descansarem. Na manhã seguinte, alguns deles(as), levantar-se-iam cedo
para cumprirem escrupulosamente a celebração da missa.
Sempre fora assim!
Todos os domingos passavam em romaria em frente à casa da
minha avó em direção à igreja situada a cerca 100 m.
Depois de beber o que restava do Sumol de ananás, caminhei
na direção do balcão e depositei a garrafa na superfície de mármore branca,
manchada de cerveja e restos de mostarda. Em arrabalde sobravam alguns homens
ébrios de bochechas rosadas e cabelos desgrenhados, esforçando-se para não
sucumbirem aos efeitos do álcool. Apesar da familiaridade dos rostos que me
cercavam – Bensafrim era (ainda é) uma pequena aldeia onde todos se conhecem –
observavam-me com olhares perscrutadores e admirados pela minha presença
solitária.
A caminho da saída, fui interpelado pelo Manuel. Um algarvio
de gema, vizinho da minha avó; conhecíamo-nos de vista, nunca trocara-mos mais
do que um “bom dia”, uma “boa tarde” ou, uma “boa noite”, até àquele momento.
“Então por aqui?”, disse ele. O Manuel tinha pouco mais de
trinta anos de idade, um tipo alto, de pele morena queimada do sol, cabelo
acastanhado claro, curto, muito espesso e puxado atrás; olhos azuis cristalinos
e sorriso trocista. Apesar da nossa diferença de idades, algum tempo depois ainda
jogámos futebol no mesmo clube, era o guarda-redes da equipa.
“É verdade”, respondi. “Pelos vistos não sou o único.”
“Pois. Isto hoje foi fraquinho. Acabou cedo”,
confidenciou-me resignado. “Então e os teus amigos deixaram-te sozinho?”
“Não”, respondi. “ Uns foram para casa antes de o baile
terminar, outros foram curtir a noite para Lagos.”
“Então e tu não foste com eles porquê?”
“Estava preguiçoso, não quis. Mas estou arrependido, com uma
noite destas, não me apetecia nada ir para casa. E tu Manuel? Vais a algum
lado?”
“Sei lá…”, acendeu um cigarro, e antes de pousar a garrafa
vazia no balcão revolveu a cabeça para um lado à procura de alguém, virou a
cabeça para o lado oposto, alçou o braço musculado, abanando a garrafa e pediu
mais uma cerveja. “ Tu? Queres beber alguma coisa? Uma cervejinha, um…?”
“Não, obrigado”, atalhei de imediato. “Olha lá, e se fossemos
a Lagos ter com a malta? Aproveitavas e bebias lá um copo, que dizes hã?”
“Ir para Lagos agora? A esta hora? Hum, é tarde, os bares já
estão a fechar”, engoliu com sofreguidão metade da garrafa de cerveja como se
fosse a última bebida da noite.
“Achas mesmo?”, retorqui.
“Sim. A esta hora não vale a pena ir a Lagos”, fez-se um
silêncio. “Olha, sabes onde vou?”
“Não diz lá?!” Bebeu mais um trago de cerveja, “vou aos
Gambozinos com a malta!”
“Vais onde? Aos gamb… quê?”
“Aos Gambozinos”, replicou.
“Que é isso?”
“Olha lá que idade tens pá? Não sabes o que são Gambozinos?”
perguntou com assombro, chocado com a minha ignorância.
“Tenho 16 porquê?! E nunca ouvi falar nisso!”
“Humm, com que então nunca foste aos Gambozinos!?” Gracejou,
“é um ótimo petisco…”
“Um ótimo petisco!?” Mas que raio de petisco será esse,
pensei eu…
“Deves estar a mangar comigo?! Aos anos que vens para
Bensafrim, tens tantos amigos, tens família e queres que eu acredite que nunca
foste aos Gambozinos?”
“Epá, nunca fui! Nem nunca na minha vida ouvi falar em tal
coisa. Mas, afinal que merda é essa? O que são Gramesiles, Gambrosilus... ou lá
o que isso é?”
“Gambozinos. Chamam-se “Gam-bo-zi-nos”,
como explicar? É um bichano que é ótimo para o petisco, tipo muelas.” A cabeça
do Manuel rodava de um lado para o outro, como que à procura de alguém que o
ajudasse com a explicação.
“Deve ser deve. Saíste-me cá um bazófias, estás a mangar e
eu a ver…-pah!”
“Não estou não. Os Gambozinos são…”
O balcão exterior do átrio esvaziara-se e o que restava dos
funcionários e dos clientes encontravam-se todos no balcão do salão interior. O
Manuel gritou com estrépito lá para dentro, “Ernesto”, não obteve resposta.
Gritou mais alto, “ó Ernesto, anda cá pá. Traz aí mais uma cerveja e um Sumol
de ananás ao moço que ele hoje vai connosco aos Gambozinos.”
Num ápice, o Ernesto apareceu com um Sumol de ananás numa mão,
uma cerveja na outra e, de voz excitada dirigiu-se ao Manuel “eia, eia, já nem
me lembrava que hoje íamos aos Gambozinos pá!” Virou-se para mim, deu-me o
Sumol, “então nunca foste aos Gambozinos?” Perguntou.
“Não!”
“Ó Ernesto explica lá ao moço o que são Gambozinos, enquanto
vou à casa de banho”.
“Olha lá e vão com quem?” Perguntei impaciente antes que o
Manuel saísse.
Cruzaram um olhar cúmplice e disse o Manuel, “então, vamos
com a malta que está lá fora. O que achas tu que eles estão a fazer junto ao portão,
hã? Estão à nossa espera e de mais gente que se vem juntar a nós.”
“Mas… ó Manuel não está ninguém lá fora. Não oiço vozes
nenhumas.”
“Devem ter ido a casa trocar de roupa. Tem calma que eles
devem estar a chegar. Além do mais, só vamos depois das portas do clube
fecharem. Há malta que ainda está de serviço e que também vai connosco que
pensas tu?”
Apesar da inverosímil história do Manuel, a verdade é que
nunca ouvira falar em Gambozinos, a minha curiosidade dominava os meus sentidos
e o desafio inquietante permanecia em saber até onde me levaria este engodo.
Fiquei sozinho por breves instantes no centro do átrio, a inspirar o perfume da
noite típica algarvia, perfume esse que nunca deixei de o sentir durante toda a
minha vida; um aroma libertado do ládano das estevas misturado com o bálsamo a
figos, amêndoas e alfarrobeiras.
Enquanto permanecia no centro do átrio, a minha mente
vagueava e ia embalando no repouso da madrugada quando subitamente, o silêncio
foi brutalmente interrompido pelo rosnar pujante dos motores dos automóveis a
chegarem ao portão do recinto do baile. Do outro lado, na minha direção vinha o
Manuel com um séquito de aldeões, funcionários do clube, amigos, conhecidos e
estranhos vindos não sei de onde. O balcão voltou a encher-se de gente de
semblante rosado e enérgico em contraste aos que anteriormente exibiam traços de
fadiga. Parecia que o baile ia começar
“Estás a ver? Esta malta vai toda connosco!” anunciava o
Manuel com voz exaltada.
“Vai esta malta toda?!”
“Sim, claro! Estavas à espera de quê? Pensavas que estava a
brincar?”
Como foi possível em tão pouco tempo aparecer tanta gente
agitada sobre o tema da “Caça aos
Gambozinos?”
O balcão voltou a encher-se de funcionários e de cozinheiras
excitadas com a iguaria que haveriam de cozinhar no dia seguinte. Falavam entre
eles e eu assistia admirado.
Apesar da situação invulgar, nunca imaginaria que um rapaz
como eu fosse capaz de mobilizar tanta gente em poucos minutos, a uma hora tão
tardia em que muitos dos intervenientes estavam exaustos.
Porque haveriam de se dar a esse trabalho?
Caminhámos para a entrada do edifício onde do lado de fora
estavam diversos carros que nos aguardavam de gente entusiasmada com o evento, tinham
sacas de sarapilheira. Segundo o Manel, teríamos de colocar a saca perto de um
determinado buraco em local estratégico na Serra, e esperar em silêncio para que
os Gambozinos saíssem do buraco diretamente para a saca.
Antes de sairmos ouvira uma conversa com várias cozinheiras
do clube que versava sobre a confeção da iguaria no dia seguinte, tudo bem
delineado e devidamente planeado, com a distribuição de tarefas muito bem
definidas entre elas, inclusivamente as horas de entrada.
Entrei num carro e seguimos em direção à Serra, não foi
longa a viagem, cerca de meia dúzia de quilómetros. Os carros imobilizaram-se
numa reentrância da Serra em piso de terra batida, e todos saíram apressadamente
dos veículos com sacas de sarapilheira na mão e foram-se colocando em locais
estratégicos que supostamente conheciam. Eu, por outro lado, fui caminhando
pela Serra com o Manel, para trás ficava o silêncio e passados alguns metros chegámos
a um pequeno monte, o Manel pediu-me para esperar um pouco para me explicar a
técnica da Caça ao Gambozino, mas logo senti um vulto em passo agitado em
direção aos carros que entretanto se haviam enchido de gente. Corri atrás dele,
mas não fui a tempo e ali fiquei sozinho quase às cinco da madrugada a ver os
carros serpentearem a Serra a caminho da aldeia de Bensafrim.
Senti-me enganado e desiludido!
Uma noite tão boa, mágica e eu ali no meio da Serra àquela hora...
Coloquei a mão no alcatrão e estava quente, certamente acima
de 30 graus. A noite estava realmente quente.
A desilusão foi desaparecendo e deu lugar à aceitação da
minha condição, aproveitei aquele momento para contemplar a natureza e a minha
presença. Não se ouvia um único som de presença humana num raio de muitos
quilómetros, apenas os burburinhos da vida animal na Serra sob um céu estrelado
magnifico e o perfume característico do Algarve.
Este momento mágico ficou cravado na minha memória e foi uma
enorme lição de vida, em como podemos olhar de forma diferente em situações
adversas e sermos positivos e capazes de nos reinventarmos e seguir em frente,
ao invés, de nos lamentarmos da situação onde nos encontramos
Passei alguns dos minutos mais mágicos e marcantes que
alguma vez senti, uma paz tranquilizadora como nunca antes havia sentido
(possivelmente depois também não), uma comunhão perfeita entre o meu ser e o ambiente,
como se fosse o único ser humano à face da Terra.
Senti-me forte, em paz, seguro… fiz-me ao caminho e passados
alguns minutos via carros a serpentearem
Serra acima para me irem buscar, mas quando eles se aproximavam escondia-me na
berma da estrada até chegar à aldeia, o percurso deve ter demorado cerca de 45
minutos.
Cheguei à aldeia com o nascer do Sol, encontrei uns velhotes
sentados junto ao antigo poço, pedi-lhes para não dizerem a ninguém que havia
chegado.
Quando me deitei ainda ouvia carros a subir e descer a Serra
à minha procura…
Continuava a busca frenética e a perscrutação impaciente dos
cúmplices: “Onde estará ele? Ter-se-á perdido na Serra?”
Todos nós ao longo das nossas vidas passamos por altos e
baixos, devemos procurar sempre o lado positivo das coisas, e transformar as
nossas fraquezas em forças
Um grande abraço às gentes magnificas de Bensafrim,
José Manuel Trindade Gomes