sábado, 12 de novembro de 2011

Multa ou Assalto?

O trânsito está caótico como é hábito aos dias de semana. Por vezes, demoro cerca de uma hora para percorrer meia dúzia de quilómetros. Normalmente tomo a marginal de Luanda, viro à esquerda na rua Serqueira Lukoki, mais conhecida pela rua do edifício BPC. Chegando ao cimo da rua tenho múltiplas alternativas na direcção da Cabral Moncada, situada entre a Maianga e a Sagrada Família. Desta vez, porém, tomo outro caminho. Em vez da marginal como de costume, vou por dentro, pela rua Major Kanyangulo uma contígua à marginal.



À minha esquerda, uma subida sem trânsito em direcção à Calçada Comandante Veneno. Olho com atenção, o sinal atesta a legalidade da manobra que farei a seguir. Ao subir a rua, novamente o trânsito parado. Inesperadamente sou surpreendido pela mão fechada dum polícia a bater toscamente no vidro do meu lado esquerdo.
“Abra o vidro e mostre-me a sua carta de condução”, ordena bruscamente.
“Boa tarde Sr. Agente. Há algum problema?”
“Sim há. O senhor circulou numa rua de sentido proibido”, mantém o tom de voz seco e hostil, e de seguida pede-me novamente a carta de condução.
Só nessa altura dou conta que não tenho os documentos pessoais. Costumo tê-los na minha pasta, mas por mero acaso não a levara nesse dia. Todavia, no porta-luvas tenho sempre 1.000 Kwanzas para o pagamento das famosas “gasosas”. Um eufemismo para suborno. A palavra “suborno” pode chocar o leitor, mas em Luanda, este comportamento está dentro dos padrões da vida quotidiana, é portanto, uma conduta banal.
“É melhor pagar e evitar chatices.” Fora-me dito inúmeras vezes por colegas de empresa e outros portugueses que por aqui trabalham, e acrescentam: “quando um polícia em Luanda teima com alguém – sobretudo se for branco – não há nada a fazer. O melhor é mesmo pagar.”
Devo confessar que este argumento nunca me convenceu; até porque, quando aqui estive pela primeira vez em 1999, comportei-me exactamente ao contrário. Uma vez, numa tentativa de extorsão vil, ameacei um energúmeno da farda de o despedir vejam só!
“Você sabe com quem está a falar? Você não me conhece! Quer perder o emprego?” – Rematei num impulso inesperado. O polícia ficou tão azamboado que rapidamente se desfez em desculpas.
“Desculpe Sr. Doutor”, abrindo caminho à minha passagem. O meu colega André que fora comigo ficou lívido de espanto.
Com os anos, vamos amadurecendo na adega da vida, moderamos os nossos comportamentos e aprendemos a controlar melhor os nossos impulsos.
Moderados os impulsos de outrora, quando comecei a conduzir sozinho em Luanda por meados de Agosto, acabei por ser preza fácil e apetecível para os tiranetes da farda.
Como há pouco referi, os portugueses (e não só!) a trabalhar em Luanda optam pelo pagamento das “gasosas” evitando assim, embaraços maiores. De facto, há histórias grotescas. Certa vez, um agente de trânsito ordena a paragem de um automobilista. Envolvem-se numa troca de palavras:
“Você não parou no sinal…” Assevera o polícia.
 “Mas não há sinal nenhum!” Responde o motorista.
“Não há, mas já houve…”
Outra história, passou-se comigo, com o director da empresa Ogimatech (grupo Reditus) João Canário e mais um colega – creio ter sido o Fortes. Após um jantar no São João, fomos beber um copo à Ilha do Cabo. Durante o caminho entre risadas e desabafos das minhas aventuras e desventuras com a polícia angolana, recebo uma vez mais ordem de paragem, muito perto do Edifício do BPC mesmo no centro da cidade. Este imponente edifício – o mais alto da foto – é uma marca incontornável da presença colonial portuguesa em Angola, talvez seja a última grande obra portuguesa no Ultramar. Vai fechar para remodelação, espero que não estraguem a sua fachada histórica, um marco indelével da arquitectura portuguesa em África.
Desta vez paguei 2.000 Kwanzas (cerca de 20 Dólares), porque a fotocópia do passaporte estava em “mau estado de conservação” e o João Canário pagou a mesma quantia já nem me lembro o motivo. A fotocópia tinha cerca de 15 dias, portanto, estava em bom estado. Um abuso de autoridade abominável; mas ou pagávamos ou ficávamos com a noite estragada.
Voltando ao início. O energúmeno do polícia ordenou que saísse do carro ameaçando levar-me para a esquadra.
“Para a esquadra? Isto é ridículo! Está a pôr-me à prova e quer dinheiro”, pensei.
Abri o porta-luvas, tirei os documentos do carro, coloquei a nota de 1.000 Kwanzas debaixo dos documentos e entreguei-os ao polícia acrescentando:
“Pegue. É o que tenho comigo. A carta de condução e o passaporte ficaram em casa mas posso lá ir buscá-los se assim entender.” Estava relativamente perto de casa, em Luanda não há longe nem distância, tudo é perto de tudo.
A expressão do polícia denunciou a desilusão pela quantia do pagamento, e senti de imediato a sua exasperação.
“Saia imediatamente do carro e acompanhe-me à esquadra.” Volta a ordenar bruscamente na vã tentativa de me acabrunhar perante a sua intimação.
Mas não me intimido. Aceito o desafio e vou a jogo. “Lá se vai o meu treino de final de tarde”, pensei.
“Muito bem.” Assenti. “Vamos então para a esquadra.” Fito-o com firmeza e perpassa algum embaraço da parte do polícia visivelmente surpreendido pelo meu atrevimento.
“Talvez tenha cometido um erro ao pegar na nota de 1.000 Kwanzas”, penso enquanto estaciono o carro e pego nos meus pertences (carteira, telemóvel). Por duas razões: primeiro mostrara pouca convicção nos meus argumentos. Se não cometi nenhuma irregularidade na condução como explicar a precipitação em pagar-lhe? Segundo, e seguindo este raciocínio, “se com esta facilidade quis pagar, com alguma dificuldade pagará muito mais!”, deve ter raciocinado o polícia que andava na casa dos vinte e muitos anos; era mais alto que a maioria dos angolanos; agressivo mas pouco convincente; e o andar desengonçado denunciava timidez e pouca assertividade.
Depois de calcorrear cerca de cinco metros o polícia pára e encaminha-me na direcção do seu superior hierárquico. Expus os meus argumentos e insisti que não cometera nenhuma infracção ao ter entrado naquela rua. A única infracção cometida fora a falta dos documentos. Mas o polícia teimava que eu estava errado.
“Sr. Agente, volto a explicar-lhe que no início da rua está lá um sinal de sentido único, portanto, é uma rua transitável no sentido que tomei.”
“Está enganado. O senhor deve andar conforme o sentido em que os carros estão estacionados. Olhe para lá e diga-me se vê algum veículo estacionado na direcção que veio?”
“Ora essa! Então para que servem os sinais? Porque insisto: está lá um sinal!”
“Pois está. Está e não devia estar! Sabe?”, Uma pausa na sua argumentação gera um ambiente de suspense; com um tom de voz suave e monocórdico assume uma postura paternal e enfatiza a confidência que fará a seguir: “para andar em Luanda é preciso conhecer bem toponímia da cidade.” Tive de girar o pescoço e mascarar o riso entre dentes de tanta imbecilidade. Talvez quisesse dizer tipologia, não sei!
“Então e agora? O que fazemos?” Pergunto-lhe.
“Vamos fazer o seguinte: você vai ligar-me para o telemóvel para registar o seu número; o seu cartão de cidadão fica comigo enquanto vai a casa buscar o seu passaporte e a sua carta de condução. “Você tem mesmo carta de condução não tem?” Mostrando zelo pela causa pública.
“Claro que tenho Sr. Agente. Então acha mesmo que se não tivesse carta de condução conduzia em Luanda?” Mostro-lhe o ridículo da sua dúvida.
“Tem razão. Acredito na sua palavra”, a duplicidade do sentido desta última frase significava que confiava num pagamento generoso da minha parte.
”Então vá buscar os seus documentos. Mas não se demore muito hã! Se por um acaso o carro patrulha não estiver aqui, ligue-me para o telemóvel porque vamos andar por esta zona.”
Apesar do contratempo não mudei os meus planos pessoais: o treino de final de tarde na Ilha do Cabo não estava posto em causa. Durante o caminho de casa pensei na melhor solução e revisei toda a cena. Analisei cuidadosamente todos os dados: por um lado ordenaram que parasse por uma suposta infracção que não cometi; mas por outro, não trazia os documentos; por um lado um dos guardas desprezou a nota de 1.000 Kwanzas – obviamente porque era pouco; mas se a intenção fosse aplicar a lei não faria nenhum sentido ir a casa para lhes levar os documentos. A conclusão fora simples: 1.000 Kanzas era insuficiente para serem divididos por dois; a ida a casa fora um pretexto para subir a oferta. Todavia, não estava na disposição de pagar nem mais um cêntimo, nem mais um dólar, nem mais um kwanza e pagaria somente os 1.000 pela falta dos documentos, “que se lixem. Passem a multa.”
Seria este comportamento sensato? Não estaria a cometer um risco? Não seria melhor abrir os “cordões à bolsa” e esquecer este episódio pitoresco?
Em Luanda escurece por volta das 18:15h. A noite tomara de assalto a cidade tornando os edifícios lúgubres e taciturnos abafados pelo mau cheiro que empesta a cidade. Chegado ao local acordado não avistei nenhum dos polícias. Peguei no telemóvel, liguei para o mais graduado e esperei. Ao fim de dois ou três minutos a calçada é iluminada pelas luzes fantasmagóricas projectadas pelas sirenes do carro patrulha da divisão de Ingombota que pára a cerca de dois metros. Olho com atenção para o seu interior e vejo três polícias: “três polícias?!” Talvez devesse ter trazido mais dinheiro pensei. Se o primeiro desprezou os 1.000 Kwanzas, como poderiam agora três satisfazer-se com esse montante?
«O que não tem remédio, remediado está» diz o povo e com toda a razão.
Sem perder tempo e sem rodeios aproximei-me do carro patrulha da divisão de Ingombota, do lado oposto ao condutor. O guarda abre o vidro e entrego-lhe em mão toda a documentação. Passou os olhos pelos papéis com desprezo sobranceiro e entregou-os ao seu superior. Calmamente, fingiu analisar a documentação diligentemente e fez um compasso de espera embaraçoso. “Afaste-se do carro, você não pode pôr aí os braços. Afaste-se!” Grunhiu intempestivamente o verdugo subalterno referindo-se à postura dos meus braços assentes na porta do veículo. O comportamento reiteradamente agressivo mostrava claramente insegurança e nervosismo que contrastava na perfeição com o meu estado de espírito. Calmo, sereno, confiante e disposto a correr todos os riscos, mesmo que implicasse o pagamento de uma multa pela falta dos documentos.
O comportamento hostil funcionava contra os próprios polícias visivelmente atrapalhados pela minha perseverança. Percebi que quanto mais agressivos se tornavam mais nervosos ficavam o que deu clara vantagem e predomínio sobre todos eles.
O superior ordena que se cale. Olha na minha direcção e diz:
“Senhor José Gomes. Vou sair do carro para falarmos os dois a sós calmamente.”
“Mas eu estou calmíssimo.” Respondi sorrindo para o interior. Contornei o carro patrulha e fui ao seu encalço para falarmos mais à vontade. Entretanto, os outros dois apeiam-se do carro, um fica a cerca de dois metros do local da nossa conversa e o outro afasta-se com o meu cartão de cidadão.
“Então Sr. Agente? A documentação está em ordem?”
“Está sim.” Entrega-me a documentação e verifico que falta o cartão de cidadão.
“Falta um documento Sr. Agente.” Começa a falar fingindo não ter ouvido.
“Mas sabe? Enquanto você foi a casa tive muito trabalho para convencer ali o meu colega a não lhe passar a multa. Consegui convencê-lo que você era um cidadão de confiança, acredite que tive muito trabalho, não foi nada fácil. Mas olhe que ele está disposto a perdoar-lhe a multa”, ergueu os braços triunfantes e contínua “agora depende de si. Tem de lhe dar mais qualquer coisa”.
“Desculpe Sr. agente. Não podem passar multa por ter circulado naquela rua. Isso é ilegal.”
“O meu colega não pensa assim. É melhor dar-lhe mais qualquer coisinha para o acalmar”. Obviamente que a referência que era feita ao colega era uma tríade de vontades.
“Mas eu já lhe dei e ele não aceitou” respondi afavelmente, puxando a nota de 1.000 Kwanzas do bolso, “está a ver? Dei-lhe há pouco e ele não a quis!”
“Pois! Mas tem de dar mais porque isso não chega, ele está disposto perdoar a multa se você colaborar. Tem de ser mais generoso com ele está a ver?“
“Muito bem.” Assenti.
“A única coisinha que lhe dou são os 1.000 Kwanzas que ele recusou há pouco. Ou os aceita, ou então que passe a multa”, não desarmo e tomo embalo para o bluff.
“Só isso. Não sei se ele vai aceitar”, retorquiu.
“Isso é um problema dele. Não é um problema meu”, e contínuo com a exposição, “sabe Sr. Agente? Estou muito à vontade porque se passarem a multa também não a vou pagar. O único problema é o tempo que estou a perder com vocês em vez de estar a treinar na ilha. É só por isso que lhe dou os 1.000 Kwanzas porque senão nem isso vos dava. Tenho muitos contactos aqui em Angola e é por isso que não estou nada preocupado com a multa que possam passar, e muito menos com o seu colega. Se assim não fosse acha mesmo que esta seria a minha oferta? Acha mesmo? Tenho muitos amigos no Ministério do Comércio, basta um telefonema para retirarem a multa” O embaraço no polícia reverberou no seu outro colega que bate em retirada e afasta-se.
“Mas há mais.” Faço uma breve pausa, e contínuo em tom de confissão: “se o seu colega passar a multa pela infracção que sabem que não cometi porque está lá um sinal que permite circular neste sentido. É o mesmo que passar uma multa contra a lei; isso é inconstitucional”. Se o guarda ainda tinha alguma intenção em extorquir-me dinheiro, esta última palavra “inconstitucional” despertou-o do torpor. Visivelmente atrapalhado liga ao seu colega: ”olha lá onde estás. Temos aqui o nosso querido amigo à espera do cartão de cidadão. Onde andas? Despacha-te porque o nosso querido amigo quer ir treinar para a ilha e está a fazer-se tarde.”
Claramente assarapantado o polícia atravessou a estrada em passada larga, docilmente entrega-me o cartão de cidadão e eu dei-lhe os 1.000 Kwanzas. Fizemos as despedidas de cortesia e ao entrar no carro vejo duas motas a passar na estrada que havia tomado uma hora antes. O carro patrulha permanecia imóvel. Fui ao seu encalço, “está a ver Sr. Agente? Afinal é permitido circular neste sentido!” Entreolharam-se, encolheram os ombros, sorriram e foram-se embora.
Tal como havia planeado, fui correr para o calçadão da Ilha do Cabo, um pouco mais tarde é certo, mas fui.

A mensagem que pretendo transmitir com este episódio menor da minha vida quotidiana em Luanda, mostra nitidamente que a coragem é o motor das decisões que norteiam as nossas vidas, das opções que tomamos ou deixamos de tomar. Ter coragem não significa que não tenhamos medos ou receios. Significa vontade em enfrentá-los.
Dedico esta minha aventura ao meu querido filho e à minha mulher (dia do seu aniversário), que tenham a coragem bastante para enfrentar as vicissitudes da vida, os seus medos e receios. Porque quem mostra fraqueza não vai longe.

Animum fortuna sequitur - A sorte segue a coragem.

7 comentários:

  1. Ola Zé,adorei o teu comentario, esta fantastico bem haja quem tem t...tes para enfrentar os infelizes que não sabem fazer outra coisa senão extoquir dinheiro a quem o ganha honestamente com o seu suor e trabalho.Com admiração um beijo grande e tudo bom,ja falta pouco...

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  2. Meu amigo, estiveste bem. Mas da próxima leva mais dinheiro e os documentos. E lembra-te da primeira e última regra de trânsito em Luanda: o único motivo para se ser agrafado é haver um agente com vontade de te agrafar. Sinais, sentidos, prioridades e outros pormenores são meros pretextos para estabelecer uma base negocial. Grande abraço, André.

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  3. Ó Zé, desculpa lá mas há aqui uma coisa que não entra na cabeça.
    Então tu já estas aí em Luanda há tantas semanas e ainda não conheces bem a toponímia da cidade, pah…
    …andas a dormir?!?!

    Abraço e até breve,
    Miguel Castro

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  4. Muito bem José, é preciso ter coragem, e confiança nos argumentos.
    Este caso é perfeitamente normal e banal. Não só em Luanda, mas também, nas outras províncias.
    Trabalhei dois anos em Angola e passei pelo mesmo, tanto em Luanda, como no Lubango. No meu caso a viatura era do MAT, e nem assim eles prescindiam de tentar a sua sorte.
    Pelo menos ao nível do SME está melhor do que era.

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  5. Boas José,
    Boa postura a tua perante os agentes policiais, infelizmente o suborno(método de alcançar os objectivos imposto pelo MPLA) é algo aceite no dia dia do Angolano mas nós os autóctones estamos a lutar pela revolução da (des)governação do JES e Capatazes.
    Força José Gomes!

    Wiscilaine Da Silva

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  6. Caí nessa página apenas numa busca sobre o significado da expressão "ars cogitandi" (que aparece no livro "A Cabeça Bem Feita",de Edgar Morin), mas mesmo fora de planos, essa leitura foi ótima!

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