sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A vida humana

O maior progresso do chamado “mundo civilizado” é o valor que damos à vida humana.
É um valor absolutamente cristalino, intocável e inviolável.
Este valor é a “pedra de toque” do mundo ocidental face ao resto do mundo
No outro dia, perto da marginal de Luanda a caminho do emprego ouvia atentamente a situação do trânsito nas imediações da cidade numa rádio local.
O locutor – creio que se chama Jorge Gomes – com grande à-vontade comunicava “… o trânsito está muito lento e na berma da estrada encontra-se um cadáver, deve ter sido atropelado…”, e continuou a informar o trânsito noutros locais da cidade.
“Na berma da estrada encontra-se um cadáver?”
Por segundos pensei que estava a alucinar, olhei para o lado direito na direcção do meu colega que vinha comigo e entreolhámo-nos com espanto e estupefacção.
“Estamos em África” dissemos um ao outro. Ao fim de algum tempo em Luanda tentamos relativizar um pouco as coisas e pôr de lado as nossas crenças e valores. Mas a afirmação é paradigmática: como se estar em África fosse justificação primeira para pôr atrás das costas toda e qualquer atrocidade aos mais elementares direitos e limites da condição humana.
A distância que nos separa do nosso mundo não é física, é acima de tudo, civilizacional.
Quando contei este episódio a um angolano, ele riu-se.
“Deixa lá isso! É normal, não fiques assim. No outro dia estava um cadáver à beira de um caixote do lixo e alguém perguntou o que era «aquilo», responderam que era um «chinês» e ninguém lhe ligou nenhuma.” Demorou alguns segundos para assimilar o que acabara de ouvir. “Como é possível”?, pensei eu - a indignação e o assombro tomaram de assalto os meus sentidos.
O respeito pela dignidade e condição humana é um legado que despontou com a Revolução Francesa e foi-se forjando ao longo de décadas e décadas; é um legado que devemos preservá-lo como o maior tesouro que a humanidade tem – a vida.
Hoje, enquanto me arranjava para mais um laborioso dia na Total EP (exploração petrolífera) na cidade de Luanda, as televisões davam à estampa a notícia de última hora: “Duarte Lima vai ser julgado pelo homicídio de Rosalina Ribeiro.”
Este caso chamou-me a atenção desde o começo. Não porque conheça Duarte Lima ou tenha alguma admiração por ele, mas por outra razão: ele venceu uma leucemia.
Há cerca de dez anos acompanhei com alguma regularidade uma menina de treze anos – Andreia de seu nome – filha de um casal amigo de uns outros amigos meus, a menina sucumbiu à doença ao fim de um ano.
Acompanhei com algum detalhe os tratamentos a que a Andreia se submetera – e eram bem dolorosos – em nome da vida, pela vontade que ele sempre manifestara em continuar entre os mortais.
Muitas vezes dou por mim a pensar como estaria ela se tivesse vencido a doença?
Feliz. Muito feliz.
Duarte Lima fitou a morte e venceu doença, a vida brindou-o novamente, como se tivesse nascido outra vez. Com alguma naturalidade e altruísmo foi um dos fundadores da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL) que tem ajudado inúmeras pessoas vítimas desta doença.
Ora, por tudo isto – e não é nada pouco – Duarte Lima deveria ser alguém com enorme apego à vida e respeito pela condição humana. Por isso, custa a crer que seja acusado de ser o autor de tão hediondo crime e que o móbil tenha sido supostamente dinheiro.
Quando os media colocaram este caso no olho do furacão ele deu uma entrevista na RTP, penso que à Judite de Sousa. Essa entrevista deixou-me impressionado pela fragilidade dos seus argumentos. Fez-me lembrar outras entrevistas desesperadas na tentativa de justificar o injustificável de outros actores políticos como Armando Vara ou Dias Loureiro.
Todos os indícios apontam para a sua culpabilidade no crime de Rosalina Ribeiro.
Claro que até prova em contrário ele é inocente.
Para quem tanto lutou pela vida, desgraça-la num calabouço é uma enorme ironia do destino.
Se acreditasse em Deus diria que Duarte Lima foi um joguete na mão de Deus e do Diabo. Este último deve ter-se ficado a rir.


Decipiunt omnes ambitione lucri. Todos enganam pela ambição de lucro.

1 comentário:

  1. Meu caro amigo, infelimente a desvalorização da vida humana não acontece só em África. Ainda ontem ouvi uma notícia na TV que me deixou aterrado: houve um choque frontal na Marginal que deixou duas mulheres em estado muito grave. Um dos condutores que saíu ileso contou o sucedido: estavam dois carros parados nos semáforos, e quando arrancaram após a luz verde, um terceiro carro meteu-se entre eles, fazendo com que o carro do lado esquerdo (onde seguiam três mulheres) fosse projectado para a faixa contrária, embatendo frontalmente num carro que seguia no sentido oposto. Uma das passageiras foi cuspida e as outras duas tiveram que ser desencarceradas. Na notícia nada referiam quanto ao facto do responsável pelo acidente ter sido identificado... Diz lá que mundo civilizado é este?!

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