segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Divórcio entre Cavaco e Sócrates

Habitualmente no desfecho de cada ano, a comunicação social em geral, apresenta uma retrospectiva dos acontecimentos mais relevantes, dos factos que mais influenciaram e vincaram a sociedade portuguesa e, cogitam o ano que se avizinha, é sempre assim, ano após ano. A agenda política no final do pretérito ano de 2006 foi, assinalada pelo “casamento” e o estado de “lua-de-mel” entre o primeiro-ministro José Sócrates e o Presidente da República Cavaco Silva. Os analistas, os comentadores, a oposição andavam muito turbulentos com a cumplicidade entre eles, segundo se dizia – os mais radicais –, Cavaco Silva era quem chefiava o país, era ele quem dava as ordens ao governo, faziam a parelha perfeita e, indubitavelmente punha em causa o próprio regime. A democracia corria perigo, apesar de todos saberem que o Presidente não governa.

Nas rádios, nas televisões, nos jornais, alguns intelectuais como por exemplo o Miguel Sousa Tavares, António Vitorino, até mesmo o Marcelo Rebelo de Sousa no programa “As Escolhas de Marcelo” na RTP 1, todos eram concordes com a aquiescência do Presidente da República em relação ao governo. A unanimidade era tão colossal que numa sexta-feira, estava eu a caminho do Porto, quando no programa “Contraditório” da Antena 1, produzido pelo António Luís Marinho – Director de programas da RTP –, com os ilustres convidados Carlos Magno, Luís Delgado e Ana Sá Lopes, estavam todos em convénio: “…é preocupante a relação de Cavaco com Sócrates…”; “…Cavaco abafa a oposição…”; “… Cavaco apoia incondicionalmente as políticas do governo…”. Durante a viagem, não concordei com quase nada do que foi dito achava mesmo um autentico absurdo. Após vários dias a ouvir mais do mesmo, comecei a reflectir sobre esta matéria e, foi com alguma concussão que vi tão amplo consenso na sociedade portuguesa, mas a interrogação que me seduziu foi, porquê? E, Cheguei a duas conclusões: a primeira é que um rumor incomensuravelmente repetido pode tornar-se “verdadeiro”, como um facto adquirido, não dando ensejo à reflexão. Ninguém chega a grande sem ser abocanhado pela pequenez, infelizmente em Portugal ainda se fomenta o culto da mentira e do rumor. Esta postura tem sido ao longo dos anos nefasta para a política e para os políticos, tem arredado a sociedade civil da política e, sejam bons ou maus, os políticos não se livram do epíteto de “Ladrões, Mentirosos, Gatunos, Aldrabões, etc.”; a segunda conclusão que cheguei é que, quando se tem uma maioria absoluta no parlamento – caso do PS –, a amotinação da oposição é mais colérica. Disparam em todos os sentidos e, nem o Presidente da República escapa à exaltação da oposição, assim como alguma opinião pública. Os partidos com excepção do governo obviamente, sentem-se impotentes e despeitados. Os seus votos não determinam a aprovação dos diplomas na Assembleia da República e, não podem “contar” com o apoio de Cavaco Silva para impedir a prossecução da política do governo, pois o Presidente tem promulgado os diplomas. A contestação é transversal às várias ideologias. Abarca o espectro político mais à esquerda até ao CDS/PP e mesmo alguns militantes e dissidentes do PS, bastante fraccionado, como provaram a divisão de votos entre Mário Soares e Manuel Alegre nas últimas presidenciais.

A exiguidade da oposição é muito inquietante para o país. É fundamental para o nosso regime, uma Republica semi presidencialista, haver uma oposição forte, e acima de tudo credível. Não basta atacar quem está no poder quando não se tem argumentos de alternativa política, os partidos têm de renovar os seus programas de acordo com as mudanças do mundo global e real. É premente haver alternativas ao governo, pessoas com ideias, gente competente, políticos congruentes. É imprescindível uma remodelação nos quadros mentais do país em geral e na política em particular. Foi então que surgiu outra questão que me seduziu ainda mais, porquê este comportamento? O que levam os partidos e alguns líderes políticos a reagirem de forma tão indecorosa? Para dar resposta a estas questões recuei algumas décadas no tempo.

Ao longo de mais de quatro décadas os portugueses foram despojados da liberdade de expressão. Foram privados no acesso ao saber – excepção feita aos meios intelectuais, universitários e os que emigraram, todos os outros hibernaram num profundo obscurantismo. Mas, Portugal não sofreu apenas a opressão do regime autoritário de António de Oliveira Salazar e de Marcello Caetano, não! Sofreu também, uma forte influência ideológica do Partido Comunista chefiado por Álvaro Cunhal.

Durante muitos anos a única oposição ao regime foram os comunistas, cognominando-se como “O Partido” da vanguarda ideológica. Os iluminados que profetizavam a libertação do povo sob o jugo autoritário do regime, através da insurreição armada. Incentivando a revolta dos operários e camponeses para a implementação da “Ditadura do Proletariado”. No início dos anos 60, quando eclodiu a guerra colonial, a oposição à chefia do país intensificou-se e radicalizou-se, mas ao contrário do que se pensava, para desilusão de muitos mentores da esquerda radical e de Álvaro Cunhal, o comunismo – para bem de todos nós – não era, não foi alternativa ao regime de Marcello Caetano. Mas herdámos dos comunistas muitos quadros políticos, militares, gestores, com esses ideais enraizados.

Antes da Revolução dos Cravos, quem não fosse comunista, era certamente fascista, bipolarizou-se e radicalizou-se a política. A Revolução dos Cravos baniu inexoravelmente o regime autoritário de Marcello Caetano, mas não impediu uma ameaça doutra ditadura, desta vez de esquerda. Portugal exorcizou uma ditadura de direita para cobiça duma ditadura de esquerda. Abrindo assim, caminho ao Déjà vu da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia encabeçada por Vladímir Ilitch Lenin. Álvaro Cunhal tentou reescrever a história da Rússia em Portugal.

A 25 Abril 1975, Mário Soares e Francisco Sá Carneiro derrotaram o Partido Comunista nas urnas para a assembleia constituinte e, Ramalho Eanes impediu a insurreição armada comunista a 25 Novembro do mesmo ano, pondo fim à ameaça de ditadura de esquerda. Implementou-se definitivamente uma democracia pluri – partidária mas, exageradamente maniqueísta na forma de fazer politica até à actualidade.

Já passaram 30 anos sobre todos estes acontecimentos, ocorreram inúmeras alterações no mundo, as democracias – com defeitos e virtudes – consolidaram-se, a Queda do Muro de Berlim definhou irremediavelmente o comunismo, porque é um regime que não serve de paradigma de desenvolvimento das sociedades modernas, não serve a individualidade / liberdade de cada ser humano. O nosso regime alinhou-se incontestavelmente ao centro, apesar de a esquerda persistir em proclamar os centristas, de direita com estigmas fascistas. A esquerda mais radical têm de alinhar as suas políticas de acordo com o mundo moderno, isto se ainda almejarem participar no desenvolvimento do país e contribuírem na credibilidade da política, mas têm imperiosamente de encarar com seriedade e responsabilidade as novas realidades e, de facto há alguma esquerda que paulatinamente está a mudar.

Hoje, podemos falar em dois PS, um de linha mais conservadora ou radical, mais à esquerda e outro alinhado ao centro, que é precisamente onde se alinha o governo. Percebe-se portanto que Cavaco Silva e José Sócrates movimentam-se no mesmo espaço político, sim é verdade, mas com diferenças obviamente. E qual é o problema? Alguém se questionou quando, Jorge Sampaio era presidente da república e António Guterres o primeiro – ministro? Não. Ninguém se preocupou.

A imaginação de “casamento” de Cavaco com Sócrates revela dois temores. Ou o actual Presidente da Republica é de direita, e se assim for, pode exercer o seu poder como contra – poder em relação ao actual governo, como fez Mário Soares. Ou é do centro e conivente com as actuais políticas do governo. Mas, não podemos ser uma coisa e ao mesmo tempo o seu contrário, pois não?

É obvio que as convicções de Cavaco estão alinhadas ao centro, assim como é evidente que Sócrates está a descolar-se da esquerda conservadora para o centro. Mas desenganem-se aqueles que julgam que estas afinidades resultam em “casamento” assim como as divergências possam resultar em “divórcio”. Cavaco está a exercer o cargo de Presidente da República como deve ser exercido, e como nunca ninguém o exerceu, sem alinhamento partidário. Apoia o governo naquilo que é conveniente para o desenvolvimento do país, assim como, rejeita as propostas que no seu entender não satisfaçam os interesses da nação, afinal o Presidente é ou não o árbitro do nosso sistema político?

Não se admirem que antes do final do ano corrente figure nalgum título de jornal ou de uma crónica “Cavaco e Sócrates de costas voltadas” ou “Divórcio entre Cavaco e Sócrates”. Isto porque, no mês de Agosto Cavaco não promulgou três diplomas aprovados na Assembleia da Republica e, sabemos lá quantos mais vai ele recusar? Não deve contribuir nada para o “casamento”.

Columna regni sapientia [Divisa] – O suporte do governo é a sabedoria.

Lisboa, 04 de Setembro de 2007

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