domingo, 19 de outubro de 2008

Premonição de um sonho

Já passavam das 22:40 h. Sai de casa alvoraçado, o mais rapidamente que pude, nem deu tempo para pensar em mais nada – “depois falo com a Paula, ligo-lhe para o telemóvel durante o caminho e conto-lhe o que se passou.” – Meditava eu enquanto procurava avidamente as chaves do carro, a carteira e o telemóvel. Fiz-me à estrada, apesar da chuva macia e manhosa, a noite estava quente e húmida, o ar contaminado por uma fragrância intensa da terra molhada e o aroma do manto verde do eucaliptal a demarcar a minha casa do IC19. O alcatrão estava lúbrico, próprio das chuvas de Verão, assim que cheguei à IC19 senti a traseira do carro fugir, congelei por breves momentos. “Calma. É melhor ir mais devagar senão ainda tenho um acidente.”
§

Todos nós sonhamos, e ouvi infinitas vezes dizer que sonhamos todos os dias, mas acontece geralmente que a maioria dos sonhos ficam aferrolhados no nosso inconsciente, não temos por isso a informação de que os sonhámos, não nos lembramos e, não temos a percepção da frequência com que sonhamos – quisera eu não ter consciência deste.
Há uns dias atrás tive um sonho inolvidável, ou melhor um pesadelo, em que assisti à terrífica morte do Alemão, grande amigo meu – Alemão é alcunha por ter vivido na Alemanha e os pais serem emigrantes desse país. Este sonho foi daqueles que afigurou-se me tão real, que nos dias posteriores ainda visualizava a silhueta do momento fatídico, com uma nitidez e verosimilhança incomensuráveis que me amolava. Mas, que poderia eu fazer? Não contei este sonho a ninguém com excepção da Paula, a minha mulher, pois senti necessidade de partilhar esta aberrante “fatalidade”, sentia-me importunado e por vezes afectado com um pequeno desassossego por estar na posse desta quimera, a minha mulher disse com o ar mais angelical e natural do mundo:
- “Isso é bom! Sonhar com a morte de alguém é muito bom! É sinal de vida.” – Que alívio – pensei eu. Uma curiosidade, no preciso momento em que acabei de escrever a frase «sonhar com a morte de alguém é bom», acabou de cair com estrondo ao chão um objecto no escritório, pois estou a escrever estas linhas na sala. Fui verificar e tombaram no escritório uns DVD, precisamente do Alemão que repousavam há mais de uma semana em cima dum aparelho de ginástica. Mas, voltando ao sonho relembro apenas a parte final, pelo que não posso historiar o fio condutor do “enredo”:
Estava eu, o Alemão e mais duas pessoas, que não consegui saber ao certo quem seriam – talvez fossem o Ricardo Velosa e o Hugo Reis. Estávamos no cimo de um edifício bastante alto, talvez um hotel. Em baixo havia três piscinas, daquelas que se vêem nos panfletos de férias dos hotéis ou aparthotéis. Como referi anteriormente estávamos no cume dum edifício e havia uma protuberância de betão, espécie de “prancha” com talvez uns 50 cm de largura e uns 2 m de comprimento junto ao muro limite do terraço do edifício, até que tive a brilhante ideia de lançar um desafio aos meus amigos presentes.
- “Pessoal, quem tem a coragem de saltar para a piscina aqui de cima? Vamos voar pessoal?”
- “Eu alinho” – disse imediatamente o Alemão de forma instintiva.
Os restantes ficaram com a respiração suspensa durante uns momentos, inertes de semblante taciturno diante da decisão afoita do Alemão, e eu não fiquei indiferente a essa letargia, à preocupação que manifestaram num silêncio calmo como a noite, depois de olhar com mais atenção a altura que estávamos das piscinas achei que o desafio por mim lançado para o “voo” teria sido demasiado precipitado e irresponsável.
- “Ó Alemão, estás mesmo com vontade! Queres ir mesmo avante com isto?” – Disse eu na tentativa que ele mostrasse algum receio, alguma dúvida, alguma hesitação, para que pudéssemos cessar este disparate.
- “Claro que sim. Mais que nunca… Vá vamos, estou mais que pronto!” – Asseverou com ar seguro e determinado redobrando o desafio a todos os que ali se encontravam, gerava-se assim o efeito de “bola de neve”, desafio atrás de desafio. Percebi que não havia volta a dar (no sonho), o Alemão nunca recuaria por livre diligência.
§
Estava mais calmo, mais sereno, depois de refeito do susto daquela entrada aparatosa no IC19, mas teria de ter cuidados redobrados na estrada, pois o piso estava bastante perigoso. De caminho liguei à Paula e contei-lhe o que se passara, ficou em estado de “choque”, e preocupadíssima como é natural nestas ocasiões. No final da conversa, que foi breve pois eu ia a conduzir, pediu-me impetuosamente para ir com muito cuidado, porque o trânsito nas imediações de Lisboa estava delicado, apesar do avançar da hora. Ainda liguei para o Pereira duas ou três vezes mas não atendeu o telemóvel. Saí do IC19 e desci os Cabos D´Ávila, mais à frente virei para a auto-estrada A5 no sentido Cascais – Lisboa, saí em direcção ao Monsanto, atravessei o viaduto e entrei novamente na A5, agora no sentido Lisboa – Cascais. Após uns breves instantes percebi que me enganara no caminho, marquei o número no telemóvel e liguei:
- “Estou? Olha onde é que isso fica? Ah! Certo, não estou longe, num instante chego aí.” – Afinal enganara-me mesmo no caminho. Não faz mal, à primeira oportunidade apanho novamente o sentido Cascais – Lisboa na A5 e vou em direcção às Amoreiras. Subi novamente o Monsanto e na descida antes da bifurcação que divide os caminhos entre a Ponte 25 Abril / Av. Ceuta / Praça de Espanha e o viaduto Duarte Pacheco…
§
Como estávamos a grande altitude, espaçadamente havia algumas lufadas de vento, não eram lufadas fortes, porque o vento era mole e tépido, característico das noites quentes de verão. Lá em baixo avistávamos as piscinas com uma cor cerúlea do luzir dos projectores aquáticos e o reflexo da lua na água calma e serena ladeadas por grandes palmeiras verdes. Os olhares penetravam tímidos nos olhos uns dos outros, talvez à procura de um consentimento, de uma cumplicidade talvez para nos certificar que estaríamos todos juntos nesta aventura, ou então pelo contrário, procurávamos a serenidade e responsabilidade de alguém que colocasse um ponto final nesta loucura.
O Alemão num impulso intrépido e decidido saltou para cima da protuberância de betão e à medida que avançava pé ante pé, a bafagem do vento lambia-lhe o rosto como se crescesse a água na boca, se aguçasse o apetite voraz da gula do diabo e à medida que avançava o medo sucumbia-lhe a coragem e a vontade de voltar atrás aumentava, mas talvez pelo orgulho avançava no sentido oposto à sua vontade, foi quando eu subi para o inicio da “prancha” e disse-lhe:
- “Alemão. Não sejas parvo volta para trás! Isto é uma loucura, uma parvoíce! Não faças isso!”
Fitou-me com uma expressão lânguida, temerosa e arrependia de estar naquela posição aflitiva, e quando decidiu recuar, ao virar-se escorregou, mesmo assim num reflexo ávido conseguiu com as mãos agarrar-se à protuberância e ficou com o corpo pendurado. As rajadas de vento nesta altura eram cada vez menos espaçadas no tempo e mais fortes no sopro. Prontamente dei um salto para cima da protuberância e fiquei deitado para segurá-lo e trazê-lo de volta, tudo isto passou-se em breves segundos. Por baixo estavam as piscinas reluzentes que repousavam no sono profundo da noite, a insolência do diabo não chegava lá em baixo, as palmeiras flanqueantes dormiam tranquilamente sem que o vento as incomodasse. As forças iam-se esgueirando num ritual gustativo, fez-se silêncio, e de repente num esforço débil o Alemão ainda vociferou.
- “Deixa estar Zé não te preocupes. As piscinas estão mesmo por baixo de nós, se eu largar as mãos caio na piscina, não há azar.”
Mas, não era verdade que as piscinas estavam mesmo por baixo de nós, estavam sim uns metros mais à frente. E com um trejeito ilustre do seu próprio temor, com um esgar de vitória ao desafio, largou as mãos presas à vida para lançar o corpo à morte. No preciso momento que largou as mãos um inexorável sopro de vento alterou-lhe a rota da queda e, ainda no início do movimento da queda ainda a poucos metros olhou-me com os olhos rasos de água num último adeus, num último lamento pois sabia que nunca mais iria estar connosco, com os amigos, com a família. Era o último adeus, um movimento silencioso e lúgubre, de um corpo de uma alma de uma parte de todos nós que ali estavam para o encontro final com as mandíbulas famintas e sedentas do diabo, era uma viagem sem regresso para a última morada. Foi com a imagem da dança do corpo leve a ziguezaguear no ar que entretanto acordei. Acordei sobressaltado e, quando caí em mim matutei:
- “Foi um sonho?! Que estupidez! que merda de sonho! Huff!” – Mas, por outro lado foi um alívio, um conforto, um sonho ter acordado daquele pesadelo, pela intensidade com que o vivi, naturalmente senti-me incomodado, mas não foi real, tudo não passou de ficção, regressei duma viagem remota no tempo e no espaço.
§
Na quinta-feira dia 14/06/2007 fui almoçar com o Alemão. Fomos ao centro comercial Vasco da Gama ao restaurante da Portugália, comemos um bife da casa e, durante a refeição falámos essencialmente sobre a viagem de férias duma semana a Salou – perto de Barcelona – que ele ia fazer com o Pedro e o Pereira (My Brother) no próximo sábado. Ele estava entusiasmado e um pouco ansioso, o que é natural. Quebrar a rotina na companhia de amigos, viver novas experiências é sempre entusiasmante. Houve um momento durante a refeição que estive tentado a contar-lhe o sonho que havia tido dias antes, mas não o fiz, se calhar por vê-lo tão animado. Entretanto a conversa tomou outras direcções e, começámos a falar sobre carros – coisa raríssima nas minhas conversas, pois não sou grande apreciador –, porque o pai dele tinha feito um excelente negócio e trouxe da Alemanha um novo carro. De seguida perguntei-lhe:
- “Então, se o teu pai comprou outro carro o que vais fazer com o Renault Clio que está nas Caldas da Rainha?”
- “Sei lá? O carro é do meu pai não é meu. Deve ficar por lá, pode fazer falta quando algum se avariar ou quando forem às revisões.”
- “Olha lá, e tu quando é que trocas de carro?” – Sugeri-lhe.
- “Porque haveria eu de trocar de carro se estou satisfeito com o meu?” – Respondeu-me admirado com a minha sugestão.
- “Então! Tens esse carro há tantos anos, tem um consumo de gasolina desmesurado…”
- “Não consome muito! – Atalhou. “Depende da velocidade com que se anda. O meu pai por exemplo, quando ia a Braga ver a minha avó e levava o carro fazia excelentes consumos.”
- “Está bem, mas o teu pai também não passa dos 100/110 km/h. Além disso repara que o carro não tem ar condicionado, está velhote (BMW – 316 de 1993), e também faz bem mudar.”
- “Hum! Não sei. É verdade que já tem uns aninhos, mas mesmo assim gosto muito do meu BMW.”
- “Por ser BMW?” – Insisti.
- “Não. Não é só por isso, mas gosto do carro pronto!”
- “Tu é que sabes. Mas pensa um pouco, tu agora andas muito mais de carro, deslocas-te com mais frequência, vens mais vezes a Lisboa, e ainda temos o futebol aos Sábados e às Quartas-feiras gastas muito mais dinheiro em gasolina. Porque não vendes o BMW e ficas com o Renault Clio que é muito mais económico?”
- “O quê?! O Renault Clio que está nas Caldas? Tu não estás bom da cabeça! Então achas que alguma vez eu queria aquele carro para?! Aquilo está ali para as voltinhas do meu pai quando vem a Portugal”
-“Sim, mas o teu pai tem agora outro carro…”
§
À noite, já o dia tinha ido repousar e a noite começava a bulir, estava eu ensimesmado nas minhas leituras, quando por volta das 22:30 h toca o telemóvel:
- “Estou.” – Disse eu.
- “Sou eu o Alemão. Tive um acidente.” – Respondeu-me com uma voz sôfrega
- “Um acidente?!”
- “Sim. Tive um acidente de carro.” – Retorquiu.
- “Tiveste um acidente de carro? Mas, estás bem? Como foi isso?” – São as perguntas que normalmente fazemos, quando somos apanhados de surpresa, nunca estamos preparados para receber este tipo de notícias.
- “Sim, eu estou bem, mas o carro é que de certeza vai para a sucata...”
- “Bom, deixa lá o carro, isso agora não importa. O Importante é tu estares bem.” – Atalhei eu, mais preocupado em saber se ele realmente estava bem de saúde, ignorando o estado do carro.
- “Não sei como aconteceu… eu... eu vinha a subir o Monsanto na A5, e, e...perdi o controlo do carro e, e… passei as quatro faixas de rodagem e, e… capotei, e, e… Humm! Shuff! Humm! Shuff …” – Nesta altura o Alemão mais tartamudeava e chorava do que falava.
- “Tem calma. Estás mesmo bem? Não estás ferido? Onde foi o acidente que eu vou já para aí?”
Já passavam das 22:40 h (…)
Ao descer o Monsanto antes da bifurcação que divide os caminhos entre a Ponte 25 Abril / Av. Ceuta / Praça de Espanha e o viaduto Duarte Pacheco avistei do outro lado da auto-estrada o que restava do acidente. Ali estava o BMW vermelho, atravessado no centro das faixas de rodagem de olhar triste e mofino na direcção do separador central, nesta altura os bombeiros já o tinham colocado com as rodas no alcatrão – pois tinha capotado.
O bulício era enorme, bombeiros, ambulância, policia, curiosos, mas apesar do aparato consegui em menos de 10 minutos dar a volta nas Amoreiras e chegar ao local do acidente. Assim que cheguei, fui sofregamente ao encontro do Alemão. Demos um abraço, agora ele já podia desabafar num ombro amigo, chorou o lamento debaixo duma chuva que de miudinha se tornara incessante e colérica. Mas quando as emoções começaram lentamente a repousar, foi necessário tratar da parte burocrática, e iniciou-se o preenchimento das declarações juntamente com a polícia e com a dona dum outro carro sinistrado. Só nesta altura notara que o acidente não fora unicamente um despiste, mas havia também a participação duma outra pessoa, dum outro veículo, sem culpa nenhuma é certo. O BMW já estava nesta altura na berma com os faróis a apontarem na direcção das Amoreiras, dando por findo os trabalhos dos bombeiros. Fui ao seu encontro para ver o seu verdadeiro estado, não queria acreditar no que via, totalmente amolgado, penso mesmo que não havia chapa alguma sem as indeléveis marcas do infortunado despiste – era sucata, ponto final.
Olhava para o carro. Olhava para o Alemão. Mirava o carro. Voltava a olhar para o Alemão via-o na azáfama do preenchimento da papelada, ia para cima vinha para baixo, como foi possível não ter sofrido nenhuma mazela – pensava eu? Com excepção dum corte que fez na mão, mas não foi do acidente, foi quando estava ao telemóvel e tentou desligar o carro, como estava capotado teve de se baixar e fazer um esforço para alcançar as chaves na ignição, como havia vidros espalhados por todos os lados cortou-se, mas foi um pequeno golpe sem importância.
Junto à berma uns 30 metros mais abaixo encostada a um carro preto – Nissan Micra –, estava uma senhora vestida de escuro, baixinha de cabelos negros que contrastava com o rosto lívido, careta assustada de olhar cadavérico e suspenso. Aproximei-me dela e disse:
- “Boa noite. Desculpe a senhora assistiu ao acidente?” – Levantou os olhos grandes e esbugalhados na minha direcção – parecia um fantasma – e respondeu me com uma voz trémula arrastando a sua incredulidade.
- “Não. Sim. Aquele senhor é seu amigo?” – Apontado o dedo na direcção do Alemão.
- “É sim.” – Respondi.
- “Eu ainda não sei bem o que se passou! Eu vinha na estrada, na faixa da direita e, de repente o seu amigo passou por cima de mim!” – Apontou o dedo novamente na direcção do Alemão admirando-se de ele estar vivo.
- “A senhora está-me a dizer que, quando vinha na faixa da direita o meu amigo durante o despiste embateu no seu veículo, certo?” – Observei o carro dela a lateral direita estava intacta, a parte da frente idem, que estranho!
- “Não. O senhor não está a entender. Estou-lhe a dizer que o seu amigo «voou» à minha frente, o carro dele passou por cima do capô do meu, e raspou. Está a entender?” – Logo de seguida o Alemão aproximou-se de nós com a informação de que estava a acabar de preencher a papelada com o pai dela que entretanto chegara.
Depois da papelada devidamente preenchida, chegaram ao local o reboque e o pai do Alemão, o Sr. Francisco que estava em Portugal nessa altura, a desfrutar o sossego das Caldas da Rainha. Ainda assistimos à colocação do malogrado BMW vermelho no camião de reboque para uma despedida lúgubre e triste e, vimo-lo afastar-se por entre a chuva que teimava em não dar tréguas. Apesar do inusitado acidente tudo não passou de um valente susto e prodigiosamente o Alemão nem uma escoriação física sofreu.
Moral da história: apesar de ser agnóstico até posso admitir que sonhar com morte de alguém seja um sinal de vida, mas uma coisa é certa; nunca mais aconselho ninguém a trocar de carro.

PS – Meu amigo, afinal sempre trocaste de carro, e ficaste com o Renault Clio, deixa lá, é mais económico (Abraço).

Absque sanitate nemo felix - Sem saúde, ninguém é feliz.

1 comentário:

  1. Pois é amigo. Uma coisa que aprendi disto tudo foi.
    1 - Nunca mais falar contigo sobre carros e se por alguma razão o fizer, irei imediatamente trocar, vender ou mesmo dar se assinm o disseres.

    Alemão

    ResponderEliminar