segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O mistério da morte

A cultura é sempre uma afirmação da negação da morte, porque se o Homem não tivesse a condição para negar a morte, provavelmente não seria capaz de criar a imortalidade simbólica, desistiria de criar o que quer que fosse. Nós negamo-la a todo o momento mas, o nosso desejo limite seria a garantia da resolução desta questão. Mas, ao mesmo tempo, isto é um paradoxo curioso, porque no momento em que a resolvesse-mos não haveria condição para criar mais nada, não haveria condição para a inteligência, nem para a cultura porque, a inteligência manifesta-se perante a falha. É a falha e a interrogação «para onde vamos?» que permite a inteligência. O título desta crónica (ou opúsculo) – «o mistério da morte», é inquietador e tenebroso para a mente humana e, foi exactamente esse o resultado que pretendi alcançar quando o escolhi. Porquê? Porque, mistério é aquilo que os homens não conseguem explicar, e morte é a única experiência que não se pode transmitir. Isto convoca-nos para a mais profunda cogitação do grande enigma da humanidade e o temor que assola o Homem quando a encara – a morte.

Desde o meu nascimento até à idade pré – adolescente, passava as férias de Verão em casa da minha avó paterna na aldeia de Bensafrim – perto de Lagos –, em pleno barlavento algarvio. Eram momentos especiais, um ponto de encontro onde a família se reunia, onde convivia com amigos locais procedentes da infância – fora da rotina diária de Massamá – e, tinha o privilégio de estabelecer um contacto directo com a natureza: a serra e o mar; o campo e a praia. Foram tempos memoráveis, com muitas histórias engraçadas, vou recordá-la uma delas, apesar de mórbida.

«Actualmente, as grandes cidades são um autêntico flagelo para a liberdade e convívio das crianças, apesar de ter crescido próximo de quintas e árvores estava circunscrito a alguns hectares de natureza. Talvez por isso, desfrutasse com enorme deleite a minha liberdade em Bensafrim. Sempre que assentava o pé na rua, sentia o perfume brotado das estevas, trazidas pela bafagem da serra. Depois, podia escolher diferentes caminhos para palmilhar, era a minha liberdade suprema: à direita entre duas ruelas fitava a escola primária, uma escola dos anos 40/50 típica do Estado Novo – palco de tantas brincadeiras e dos primeiros pontapés na bola; à esquerda, do lado ocidental, confluía para o centro da aldeia passando pela fonte que tantas vezes me saciou a sede debaixo de sol inclemente; à esquerda na direcção sudeste, desembocava no campo de futebol e no malhadouro (eira); e, nesta mesma direcção um pouco mais à direita (lado oriental da povoação), havia uma artéria que cruzava vários dos nossos «destinos». Calcorreámos esta via de paralelo ladeada por um paredão do lado direito, delimitando uma das propriedades da família mais endinheirada da aldeia, os Bago D´uva. O lado esquerdo era composto duma fiada de casas rústicas que convergiam até ao adro da igreja enternecido de um aroma a figos, embalado de hora a hora, do alto do campanário pela doce cantilena dos badalos dos sinos. Seguimos caminho abaixo, depois da igreja, ficava o cemitério já muito perto da ribeira, acabáramos de chegar ao destino.

Foi no crepúsculo de mais uma tarde em Bensafrim, que eu e um grupo de amigos decidimos ir ao cemitério velho onde havia uma enorme nespereira. A árvore frutífera estava cultivada numa herdade privada mas, crescera tanto, que derreou para o interior do cemitério recostada ao muro que traçava o seu limite e o da herdade. O tronco situava-se no terreno dos vivos, as nêsperas no lugar dos mortos. Para alcançarmos as nêsperas, tínhamos de entrar no interior do cemitério, como os muros eram altos, parecia um bastião, tivemos de fazê-lo pela porta frontal pois, era a única alternativa de acesso. A fachada era composta por dois degraus de laje salientes e acidentados, sob o olhar austero de dois portões de ferro preto enferrujado.

Após alguma hesitação da minha parte, decidíramos então entrar no cemitério, uma ideia que me amedrontava por um lado mas, despertava-me a curiosidade arcana por outro. Como era um rapaz aventureiro, não me fiz rogado, ganhei coragem – para não dar parte fraca – e, lá fui. Assim que entrámos, ainda de pele arrepiada pelo estridente ranger dos portões arrastados no lajedo, avistei um muro caiado de branco a circunscrever todo o recinto sacro. Em frente, do lado direito, estava um sedimento de cimento com um tampão na superfície, afagado pelos aprazíveis ramais da nespereira. Coagidos pelo ímpeto da gula, galgámos lá para cima. Quando estava refastelado a comer as nêsperas, fui colhido por uma indomável curiosidade de perscrutar os mistérios que o tampão ocultava, foi simplesmente aterrador. Assim que o abri, vi uma enorme quantidade de ossos de cadáveres humanos, mudei de cor, fique lívido, ouvi uma gargalhada em uníssono em meu redor, pois, todos sabiam perfeitamente o que estava lá dentro.

Um cemitério transporta geralmente uma carga negativa, principalmente para aqueles que não têm o hábito de os frequentar, como era o meu caso. Ora, isso não se passava com as gentes locais, que o encaravam com o mesmo à-vontade com que o faziam, por exemplo, com a igreja assente a paredes-meias do cemitério. Na altura senti algum rubor e incómodo, parei imediatamente de comer as nêsperas, apesar de suculentas.

Foi na placidez desta aldeia, a calcorrear ruas e artérias de paralelos, a palmilhar caminhos velhos, subir e descer serranias e vales, brincar e nadar nos rios e barragens, que vivi as mais belas experiências da minha infância e parte da pré-adolescência, recheadas de vida. Mas, também foi nesta aldeia, que pela primeira vez na vida vi ossos de cadáveres humanos; não deixa de ser uma experiência inquietante e simbólica do medo da morte.»

Entre os anos de 1986 e 1988, um anátema abateu-se sobre a minha família, faleceram três tios e o meu avô paterno. Os alicerces da família ruíram e, então tudo mudou. Daí para a frente as férias foram inexoravelmente alteradas pela adversidade inevitável da Lei da morte. O desaparecimento dos meus familiares foi tão devastador que asseverei: «nunca mais na minha vida quero passar férias em Bensafrim», tudo eram recordações, memórias de momentos passados com pessoas que já não estavam entre «nós». Acabei por mudar de ideias e, passados alguns anos reconsiderei, tendo mesmo vivido com a minha avó cerca de um ano e um Verão de férias escolares onde: conclui o 10º ano do curso Técnico-Profissional de Informática de Gestão; completei uma época de futebol no clube local – Estrela Desportiva de Bensafrim; e, fui recompensado por uma extraordinária experiência de vida.

Em casa da minha avó, há quase cinquenta anos está exposto numa das paredes da sala um quadro ajaezado com a pintura do rosto do meu pai. Quem entra em casa não pode deixar de o contemplar e, desde muito novo que sinto uma especial afeição àquele quadro, sem nunca saber porquê, talvez por prender um momento do meu pai anterior à minha existência. Após a sua recente morte, no dia 05 de Novembro de 2007, psicologicamente fui impelido de colocá-lo na parede da minha sala, porquê? A resposta espontânea e comummente adoptada é; para recordar aqueles que já não pertencem ao «nosso» mundo, e porque sentimos a sua falta. Mas, eu pergunto, será só isso? Ou, haverá algo mais no meu subconsciente – e na espécie humana – que me leva a agir desta forma?
Diariamente somos invadidos e atraídos por todo o tipo de imagens que nos afectam de modos muito diferentes, faz parte da nossa e de qualquer outra cultura. Entre todas estas imagens, há uma em particular cujo poder é simplesmente hipnótico, ao mesmo tempo que nos conforta, também nos amedronta e aterroriza. São imagens, que nos manipulam por um lado mas, por outro, garantem-nos uma enorme segurança: são as imagens da morte ou da sua representação simbólica. Todos nós somos atraídos por este tipo de imagens, seja a nossa morte ou a dos outros, por exemplo: quando há um acidente de viação, sobretudo se envolver feridos e/ou mortos, automaticamente desperta-nos um instinto de curiosidade, mesmo que nos aterrorize; o mesmo se passa quando vemos o telejornal. Já repararam que mais de 60% ou 70% das notícias são sobre fatalidades que envolvem: a guerra; o terrorismo; actos de genocídios; conflitos étnicos, religiosos, culturais, decisões ínvias que geralmente abonam na morte?

Construímos cemitérios para os nossos mortos, construímos grandes estruturas e monumentos para os nossos líderes, rodeamo-nos com retratos dos nossos ancestrais, para preservar a sua memória. Mas, será verosímil que os possamos esquecer? Há uma frase lapidar de Shakespeare que diz: «Conservar algo que possa recordar-te, seria admitir que posso esquecer-te.» Porque será então que temos necessidade de nos rodear com constantes lembranças da morte? Será que o retrato do meu pai atiça-me uma série de emoções que não domino, emoções inconscientes e, de certa forma, mais relacionadas com minha morte do que a do meu pai?

Vamos fazer uma viagem no tempo, e procurar as respostas na estirpe da humanidade, descobrir o que compeliu pela primeira vez o ser humano a rodear-se com imagens da morte.

O local mais antigo na Terra onde o Homem viveu mais tempo continuamente até à actualidade, foi Jericó. Esta cidade é famosa pela história bíblica, foi onde Josué derrubou com as suas trombetas os muros da cidade há cerca de 3.000 anos. Esta cidade do Médio Oriente, situada no vale do rio Jordão na actual Palestina, é uma das cidades mais antigas da humanidade – com mais de 9.000 anos – e, em 1950 foi feita uma descoberta extraordinária. Nesse ano, uma equipa de arqueólogos britânicos da Universidade de Cambridge, foram investigar as antigas muralhas da cidade e, no último dia da expedição a arqueóloga Cecil Western, descobriu algo muito mais antigo do que as muralhas que estavam a ser investigadas. Descobriu uma caveira diferente e desconhecida do mundo da arqueologia, pois, estava decorada com argamassa. O artista separou a caveira do corpo e, com argamassa reconstruiu delicadamente o rosto da pessoa falecida, no lugar dos olhos, foram colocadas duas conchas do Mar Vermelho que ficava a uma distância bastante considerável para a época, sendo por isso, um bem valioso. Foi a primeira representação (do conhecimento contemporâneo) artística da morte. Estas representações no fundo eram retratos, com uma base lisa para serem colocados em estantes, prateleiras, no chão, ou em nichos. Quer isto dizer, que há 9.000 anos atrás, as pessoas de Jericó decoravam as suas casas com os rostos das caveiras dos seus antecessores, devidamente decorados e adornados. O que levou a sociedade de Jericó, tal como as sociedades modernas a procederem assim? Talvez a resposta esteja na grande diferença entre o ser humano e os restantes animais.

O que distingue o ser humano dos outros animais?
Uns dirão a inteligência, outros a capacidade do Homem em pensar, outros ainda, a habilidade do humano em superar as adversidades naturais, etc. Em Lagos, o meu professor de filosofia, aliás, um eloquente professor de filosofia, moldou indelevelmente a minha visão sobre o mundo. Ensinou-me muitas coisas, uma delas foi a reflectir sobre o cosmos e a duvidar das certezas, dos dogmas. Todos os animais agem para evitar a sua morte, tal como nós, é um instinto básico evolucionário de sobrevivência que partilhamos com os outros animais. Contudo, os seres humanos têm algo mais que os outros animais, temos a capacidade de reflectir, isso permite-nos perceber a inevitabilidade da nossa morte e, compreender que não lhe podemos escapar. Temos um cérebro demasiado poderoso para imaginar um mundo no qual não mais estaremos presentes. É um grande problema que os humanos têm de enfrentar, é a nossa «condenação», isso reflecte-se no nosso comportamento do dia-a-dia: tentamos conservar a nossa vida; desejamos ser melhores e triunfantes; temos ambições, projectos, etc., e, no fundo, sabemos que na barreira da morte sairemos sempre derrotados. É um pensamento aterrador, hediondo. Mas existe uma forma de aliviar esse medo: através da arte. Há um grupo de especialistas que acreditam que a arte ajuda a explicar, o motivo porque nos cercamos com este tipo de representações simbólicas da morte, são psicólogos no Arizona. Segundo eles, através da arte os humanos representam o mundo natural e controlam esse «mundo». Assim, quando criamos imagens representativas da morte, e dos nossos ancestrais, ganhamos algum controlo sobre a morte, asseguramo-nos de que não é tão nociva e isso conforta-nos.

Os Professores e psicólogos Jeff Greenberg e Sheldon Solomon decidiram fazer uma experiência para tentar descobrir o que acontece na mente humana quando, observamos imagens que nos fazem recordar a morte. Coligiram dois grupos de estudantes. No primeiro grupo conduziram os alunos a pensar na sua própria morte inadvertidamente, induziram-na no subconsciente dos estudantes. De seguida, os alunos foram para uma sala, um de cada vez, e foi-lhes atribuído um controlo remoto para passarem imagens fotográficas num retroprojector, sem quaisquer restrições de tempo, para que pudessem contemplar de forma discricionária cada imagem. No ecrã estavam personalidades das mais diversas áreas, uns vivos, outros falecidos. O grupo que foi induzido a pensar na morte, observou durante muito mais tempo as imagens de ícones já falecidos como por exemplo: Elvis Presley, George Washington, John Fitzgerald Kennedy, Marilyn Monroe, Albert Einstein, Winston Churchil, etc. Este estudo revela que ao pensarmos na morte, reconfortamo-nos a observar imagens de pessoas que já morreram.

Será que o desejo de colocar o quadro do meu pai na minha sala está relacionado com o temor inconsciente da minha morte, procurando assim, algum conforto?
Em Jericó, os cientistas supõem que a média de vida era de 24 anos, a morte devia aterrorizá-los no dia-a-dia, para se consolarem, fizeram representações artísticas dos seus mortos. Era uma forma de os manter «vivos» e não temer o fim da vida. O que motivou os habitantes de Jericó foi um instinto humano universal. Todavia, o reconforto destas imagens, são apenas uma parte da moeda, pois, há um lado em que não nos conforta, bem pelo contrário, aterroriza-nos, tal como os ossos que avistei no cemitério de Bensafrim. Há representações da morte simplesmente perturbadoras, por exemplo: um quadro muito famoso do pintor espanhol Francisco de Goya, que pintou «O Três de Maio de 1808 em Madrid», em que se vê os militares franceses de Bonaparte a chacinar o povo espanhol; ou, o logótipo das tropas de Himmler das SS do regime nazi de Hitler, que escolheu como símbolo uma caveira com ossos cruzados; ou, as esculturas e pinturas das civilizações da América Latina e da América do Sul.

Mas, o que levou os humanos a criarem imagens tão perturbadoras?

No Norte do Peru, o povo Moche entre os séculos 100 e 700 consumiram estas imagens da morte até ao limite humano. O antropólogo Steve Bourget investigou o templo da Lua com as imagens mais grotescas da Antiguidade. Representações alusivas a rituais de sacrifícios humanos, actos perturbadores. Lagartos a transportarem cabeças humanas decapitadas, etc. Bourget numa das escavações encontrou uma série de cadáveres humanos esventrados. Os Moche criaram rituais de sacrifício e conceberam imagens da sua representação, não era arte de fantasia mas, arte como documentário. Em todas estas civilizações o sacrifício era um modo de vida, celebravam com grande solenidade todos estes actos e, representavam-nos através da arte. Os indígenas mexicanos, os Astecas, conduziram este tipo de sacrifícios humanos numa escala colossal. Em 1487 os Astecas perpetraram cerca de 40.000 sacrifícios humanos durante 4 dias na pirâmide Tenochtitlan. As vítimas eram forçadas a subirem 114 degraus da pirâmide para a morte: os sacerdotes mascaravam-se com adereços feitos de ossos humanos e, ainda em vida, arrancavam-lhes os corações e a cabeça que eram aproveitadas para decoração de paredes e muros. Tal como os Moche, os Astecas também documentaram os ritos através da arte.

Porque será que estes povos confeccionaram estas mortandades numa escala enorme? E, porque motivo estes povos rodearam-se de imagens destas carnificinas humanas, e exibiram-nas com orgulho?

Por causa do deus Sol. Era o deus provedor da vida mas, não era um presente que vinha de graça, pagavam a providência com a própria vida. Caso não pagassem, o Sol ir-se-ia embora, as colheitas definhariam, e a vida sucumbiria. Os triunfantes desta depravação do imaginário da morte, foi a poderosa elite da hierarquia social Asteca, um dos mais bem sucedidos regimes de terror que a humanidade conheceu. Através da arte, implantaram uma poderosa dependência sobre as emoções e as mentes dos seus súbditos, através do medo da morte mas, acima de tudo, tiveram outro efeito ainda mais poderoso na mente da população; induziu-os a acreditarem nos valores do estado. O Estado, impunha forçosamente a recordação constante que o povo estava em débito perante o Deus Sol, as imagens inspiravam a lealdade e a obediência. Os líderes Astecas usaram a arte para fortificarem toda a estrutura da sua civilização. É provável que alguns plebeus poderiam interrogar-se mas, certamente que a maioria era mais bem servida psicologicamente identificando-se com os poderes que controlavam a morte, tal como as igrejas ocidentais e a religião em geral.

Será que nos dias de hoje, nas sociedades modernas, o Estado conseguiria manipular a mente humana, através do medo da morte?

Nos Estados Unidos, houve dois psicólogos que fizeram uma experiência muito interessante: colheram dois grupos de estudantes com convicções politicas diferentes, metade apoiava o Partido Democrata, a outra metade o Partido Republicano. Os alunos foram chamados a distribuir molho picante para alguém comer, os alunos dividiram de forma equitativa o molho – cerca de 12 gramas –, tanto para os correligionários, como para o partido da oposição. Depois, os psicólogos reuniram outro grupo de estudantes mas, pediram-lhes que lessem um questionário de modo a pensarem na morte: «Descreva rapidamente as emoções que o pensamento da morte lhe desperta?». Voltaram a distribuir os molhos equitativamente mas, quando foi para distribuir aos que tinham convicções políticas contrárias, distribuíram 27 gramas de molho, ao invés de 12 gramas. Portanto, quando pensamos na nossa morte, apoiamos os que partilham os nossos valores, os nossos credos e, objectamos aos demais, é um instinto humano universal. É tão relevante para os estudantes norte-americanos como para os Astecas ou outros povos da antiguidade.

Outro exemplo deste instinto: todos sabemos que a politica de George W. Bush é ridícula e patética, mesmo entre os americanos, como se explica então a sua reeleição? O Presidente George W. Bush recorreu a estes princípios básicos da psicologia para a sua reeleição nos Estados Unidos. Durante a campanha eleitoral, fez questão de recordar sistematicamente os americanos dos ataques que foram alvo no «11 Setembro de 2001». Os americanos atemorizam-se e, procuram uma segurança psicológica. Quando Bush fica sem argumentos, recorre sempre ao medo dos terroristas, às ameaças iminentes do Ossama Bin Laden, e este faz exactamente o mesmo. Os grandes líderes adquirem uma enorme simpatia ao induzirem as pessoas de que são figuras heróicas, principalmente nas lutas contra o mal, porque, não há mais nada agregador do que o ódio. O ódio faz-se a inventar laços primários que se organizam contra um inimigo comum, é o grande segredo das grandes lideranças.

Quando o pintor espanhol Francisco de Goya pintou a cena «O Três de Maio de 1808 em Madrid», com os franceses a chacinarem o povo espanhol, foi para inspirar a lealdade dos valores revolucionários franceses. É uma pintura que celebra os sacrifícios do povo espanhol pela sua independência em relação aos franceses. Na Alemanha nazi, o logótipo da caveira com ossos cruzados foi usada pelas SS para instigar a obediência. Pensar na nossa própria morte, é investir no nosso sistema de credo. Aqueles que têm crenças diferentes das nossas são uma ameaça psicológica, é um instinto humano universal.

Cercamo-nos com dois tipos de imagens da morte muito diferentes, umas confortam-nos, outras aterrorizam-nos. Cada uma delas conserva uma poderosa influência sobre a nossa mente mas, e se imaginássemos uma imagem que reunisse estes dois poderes em simultâneo? Na verdade ela existe e, no mundo Ocidental é uma das imagens mais familiares: a cruz. A cruz conforta o ser humano; independentemente de se ser cristão ou não, de se ser crente ou não ou, simplesmente por superstição. A cruz é uma representação de dor e sofrimento, é uma imagem tão medonha como eram as da América Latina. Mas, se observarmos a cruz somente como imagem, como representação, é a figura de um homem a esvair-se em sangue numa morte agonizante. Esta imagem deveria aterrorizar-nos. Será assim tão diferente das imagens de sacrifício criadas pelos Astecas? Penso que não.

O que será que acontece na mente humana para tornar esta imagem tão reconfortante para tantos seres humanos?

É do conhecimento da História, o momento em que os seres humanos reuniram pela primeira vez este tipo de imagens da morte, reconfortantes e assustadoras, foi há 2.500 anos pelos etruscos. Os etruscos foram uma civilização empreendedora, foram eles que deram as ferramentas aos romanos para que estes construíssem um grande império. Muito do que os romanos nos deixaram, foram dos etruscos: foram eles que construíram as fundações de Roma; estradas; pontes; sistemas de irrigação, novos conhecimentos de engenheira (construções em arco); aquedutos para abastecimento de água; e professavam uma religião diferente, tanto da grega, como da romana. A Etrúria ficava em Itália, onde actualmente é a Toscana com capital em Florença.

No século XIX, os arqueólogos descobriram milhares de tumbas etruscas, com imagens a retratarem o paraíso com cerca de 2.500 anos, portanto, muito antes do catolicismo. As tumbas Etruscas foram gizadas como casas para a morte, tinham todos os detalhes duma casa: tinham uma entrada para as camas, uma suite, janelas, um terraço. Algumas centenas de anos após a sua construção, depois do desaparecimento das casas de madeira dos vivos, a cidade de pedra dos mortos continua edificada. Para os Etruscos, a morte parecia ser apenas uma simples e agradável continuação da vida, no entanto, há um lado obscuro na forma de encararem a morte. Em 1985, durante umas escavações num oleoduto, foram descobertas novas tumbas com imagens que não visavam o conforto mas antes, o assombro. Em 420 a.C., os artistas e/ou governantes incutiram na mente humana o que actualmente chamamos de Demónios. Um submundo de dor e sofrimento, isto é, os etruscos foram a primeira civilização a representar o Inferno. O que terá mudado ou motivado os etruscos em 420 a.C., para se cercarem com este tipo de imagens? Um dos motivos foi a guerra contra os romanos. Os Etruscos estavam sob intimação da voracidade e agressividade dos romanos, que constituíam uma ameaça à usurpação das terras, e aniquilação da sua cultura. O povo tinha de resistir às investidas dos romanos para serem salvos, quem não resistisse, seria condenado ao inferno. Criaram a alegoria a que hoje apelidamos de Redenção, foi o grande legado dos etruscos à humanidade.

A ideia que subjaz a Redenção é levar as pessoas a olharem para além da morte, ao invés de temê-la. É muito bem disseminada a ideia do sacrifício por uma felicidade transcendente, os bons ascendem aos céus, os maus precipitam-se no Inferno. Os fundamentalistas islâmicos levam este axioma ao extremo. Por essa razão, a cruz é uma imagem peculiar porque, trabalha a mente humana de maneiras opostas. É uma imagem aterradora, representa a dor, perda e sofrimento mas, ao mesmo tempo, é uma imagem que reconforta, que mantém a esperança. Essa combinação fez da cruz, um dos símbolos mais poderosos da humanidade, e esclarece a regularidade do seu uso na tentativa dum significado perante a incompreensível privação da vida. A cruz foi última imagem que vi encrostada no ataúde do meu pai.

Cada civilização é obcecada, visível ou invisivelmente, pelo que pensa sobre a morte, ela anda escondida por detrás dos relógios. Mas, parece-me evidente que cada ser humano tem sempre a fantasia de que será o primeiro imortal, de outra forma, seria insuportável a nossa existência, ou então, somos imortais até que a morte nos bata à porta. Vou contar uma história muito antiga sobre a morte:
“Estava o Xá – soberano da antiga Pérsia – de Bagdade posto em sossego e aparece-lhe o criado preferido que lhe diz: «Xá, vou já fugir para Samarcanda – cidade conquistada pelo Alexandre O Grande –, porque fui ao mercado comprar-te os alimentos para as tuas refeições e, a morte olhou para mim fixamente, por isso, vou já hoje para Samarcanda.» O criado, que era o preferido do Xá, era um criado de facto talentoso e atento. O Xá foi ter com a morte ao mercado e perguntou-lhe: «Então morte por que é que estavas a olhar assim para o meu criado?» E a morte disse: «Estava surpreendida.», «Mas porquê?» «Porque tinha marcado com ele esta noite um encontro em Samarcanda e, não sei como é que ele estava em Bagdade.”

Não sendo religioso questiono os que são: porque motivo, só a espécie humana tem o poder de «falar» com Deus?

Nesta crónica abstive-me de proferir convicções religiosas, limitei-me a escrever sobre as imagens simbólicas da morte, o medo que os humanos têm em enfrentá-la e, o efeito que elas têm na mente humana. Mas, não posso deixar de mencionar que Deus foi a palavra que mais matou no mundo. Vale a pena reflectir se Deus deveria ser ouvido ou apenas visto.
Comecei este texto afirmando que a cultura é sempre uma afirmação da negação da morte mas, e se morte morresse? Se nós fossemos imortais? Ou, se a ciência do Homem conseguisse colonizar um humano à sua imagem?

Se o homem nunca mais morresse, não precisava de pensar porque não teria nenhuma angústia de base, que lhe permitisse mobilizar-se contra o desejo de resolução desta questão primordial, que é a morte. Portanto, a espécie humana, porque é mortal e inteligente: cria, concebe, inventa, fabrica, compõe, imagina. Se o Homem pudesse criar vida, acabava com a morte. Porque uma coisa está ligada irremediavelmente à outra, a vida e a morte, o nascimento e a morte. Se eu sou capaz de organizar um humano a partir de mim, então nunca mais morro. Por um simples facto: se eu sou capaz de fazer aquele, sou capaz de me fazer a mim. Em todo este facto há uma competição com Deus que volta à questão original da condição da espécie que é a condição da morte. Muitos dos filósofos alemães, como Heidegger, chamaram a atenção que o homem é um ser para a morte, o que é uma ideia terrível.

Aequa mors est [Séneca] – A morte é imparcial

Lisboa, 11 de Janeiro de 2008

3 comentários:

  1. Não se deve dizer asneiras .

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  2. ...andavas à chinchada no cemitério...
    ...e bem te lixaste...LOL

    Miguel Castro

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  3. ah.. gostei de tudo que eu li aqui.. são visões muito interessantes sobre a morte.. grande trabalho

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